Pretos, pobres, periféricos...O retrato do racismo institucional
- Virgilio Virgílio de Souza
- 19 de ago. de 2023
- 8 min de leitura
Texto: Virgílio de Souza

Foto: Blogueiras Negras
Uma história se repete
Em outubro de 2021, durante uma concorrida Audiência Pública realizada na ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – os números de uma pesquisa apresentada pela Defensoria Pública do Estado do Rio, deixou todos chocados e perplexos: entre todas as pessoas presas injustamente no Brasil entre 2012 e 2020 por reconhecimento facial por meio de fotos, 86% eram negros.
Em agosto de 2023, dois anos depois, ao que parece, nada mudou. Isso pôde ser constatado na Audiência Pública realizada nesta sexta-feira, dia 18, e convocada pela "Cumpra-se" – Comissão de Representação para Acompanhar o Cumprimento das Leis. A audiência tinha como objetivo, criar mecanismos para aperfeiçoar a versão final do Projeto de Lei 5272/2021, que pretende definir de forma mais apurada e justa o reconhecimento fotográfico nas delegacias de polícia do Estado.
As denúncias, são de que os critérios utilizados são subjetivos e norteados por um grande racismo estrutural punitivista, engendrado em nossas forças policiais e na justiça, cujos principais alvos são os pretos e periféricos. O objetivo da Comissão é incorporar ao projeto determinações previstas na Resolução 484/2022, do CNJ - Conselho Nacional de Justiça -, que estabeleceu diretrizes para o procedimento de identificação.
A presença desse Racismo Punitivista pode ser também observado em uma CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito do Reconhecimento mediante fotografias –, instalada no final de julho, com a presidência da deputada Renata Souza (PSOL). Nas oitivas que aconteceram até aqui, ficou claro que existe um sistema de perseguição contra uma parcela significativa da sociedade e, que o reconhecimento por retrato é apenas uma das ferramentas desse racismo escamoteado e transformado numa injusta forma de perseguição.
Foto: Jornal Capital Cultural

Representantes de diversos setores representativos da sociedade participaram da Audiência Pública que tem a finalidade de acabar com o racismo institucional na policia e na justiça
Depoimentos Contundentes
Na audiência, muitas foram as declarações e dos depoimentos que comprovavam esse racismo. Um dos mais incisivos, foi o de Osvaldo Sérgio Mendes, integrante do Movimento Negro Unificado- RJ, que fez declarações óbvias, mas que persistem em nossa sociedade: “esse Estado foi o último a abolir a escravidão, mas, na prática, continua sendo escravizador. Esse Estado continua nos ver como inimigos. Contínua a nos matar e a nos prender. O Estado precisa entender que cometeu um crime contra a humanidade, contra os negros e os índios. Precisa entender que somos seres humanos e cidadãos, que temos CPF e Identidade”. – afirmou.
Na mesma linha, Negro Ogum, figura considerada e respeitada em discussões raciais, acrescentou:
- Não temos direitos e somos perseguidos, porque eles é que são os vilões. Quando um de nós é assaltado somos nós que temos que provar e reconhecer. Quando entram duas pessoas de terno, o branco é o doutor, o negro é o segurança. Não somos nós que temos que mudar e sim eles, nem que tenham que ser punidos para que isso aconteça. Se não conseguem nos matar, querem nos encarcerar. O racismo não tem aumentado, ele só assumiu outros contornos, formas mais nítidas. Precisamos nos indignar e denunciar – acrescentou.
O presidente da Comissão Cumpra-se e um dos autores do projeto, deputado Carlos Minc (PSB), afirmou que muita coisa precisa ser feita: - O Rio de Janeiro é o estado onde há mais prisões equivocadas. Após as pessoas serem soltas, quem é que vai reparar o sofrimento, a angústia, a solidão e os dias de privação? Quem vai pagar o sofrimento da família? - Por isso, buscamos aprimorar e aprovar o projeto. Conversamos com diversos segmentos - OAB, peritos da Polícia Civil, o diretor de ensino da Acadepol, representantes de movimentos negros, e especialistas nessa causa e, não podemos fingir que o problema não existe. Temos que criar mecanismos para combater essas injustiças urgentemente – afirmou.
O deputado Luiz Paulo (também autor do projeto) acredita que essa injustiça tem que ser corrigida e que a identificação, tanto presencial quanto fotográfica, seja tratada apenas como mais um indício para a investigação. Temos que entender que não estamos fazendo justiça, o que buscamos fazer é lutar contra injustiças. Esse tipo de reconhecimento é um indício para o processo investigativo e não um fato para determinar a prisão. O ideal é que apenas a investigação completa leve à acusação. - afirmou.
Fotos de Divulgação
Renata Souza que preside a CPI, Carlos Minc e Luiz Paulo prometem unir esforços para acabar com as injustiças cometidas pelo reconhecimento facial
Nada mudou...
Os números da Audiência, realizada em 2021, são muito parecidos com os números apresentados na atual CPI. Um novo relatório concluído parcialmente no primeiro semestre de 2023 e, apresentado pela Defensoria Pública à Comissão, mostram que nada mudou. O levantamento é baseado em três pesquisas feitas pela Defensoria Pública do Rio, que apontam que nos casos de erros de identificação fotográfica nas delegacias, cerca de 80% é composta por pessoas negras.
O documento foi apresentado no último dia 03 de agosto pela Coordenadora de Defesa Criminal e Defensora Pública Lúcia Helena Barros. A pesquisa faz parte de um amplo relatório iniciado em abril de 2019, após o Encontro de Ações Estratégicas da Defensoria Pública. Ao longo daquele ano, foram analisados casos de reconhecimento, em delegacias e foi constatado que em 58 erros observados, 80% foram contra pessoas pretas.
Uma segunda pesquisa, realizada em parceria com o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) entre novembro e dezembro de 2020, identificou que o Rio de Janeiro é o estado com maior número de erros em reconhecimento e que, em todo o Brasil, pessoas negras representam 83% dos casos de prisão via reconhecimento facial. O terceiro levantamento, feito entre janeiro e junho de 2021, identificou que 63,74% dos casos foram contra pessoas negras.
Ainda conforme o relatório, houve casos de pessoas que ficaram presas por até três anos após reconhecimento fotográfico equivocado. Lúcia Helena disse esperar que os dados apresentados ajudem a Comissão a propor medidas para diminuir as injustiças:
- A criação dessa CPI é de suma importância e trará muitas contribuições à sociedade. A Defensoria está à disposição para trabalhar com a Alerj e corrigir esses equívocos. Identificamos os casos e um forte viés racial nesses casos. Precisamos jogar luz sobre essa realidade para entender como tratar o tema" - afirmou.
Próximos passos
Os integrantes da CPI pretendem realizar uma série de diligências nas delegacias nas próximas semanas. Na reunião da última quinta, dia 17, por unanimidade, ficou decidido que os integrantes da CPI vão visitar as delegacias com maior incidência de prisões realizadas através do reconhecimento fotográfico. A primeira a ser visitada será a 54ª DP (Belford Roxo), na Baixada Fluminense, uma das que mais registram prisões por reconhecimento facial. Há uma visita agendada também para a Acadepol – Academia de Polícia -, no Centro do Rio. O colegiado quer analisar como é feito o reconhecimento na unidade.
Segundo a presidente da CPI, deputada Renata Souza (PSOL), houve casos de prisões de inocentes provocadas por equívoco no procedimento: “Ocorreram alguns casos nessa delegacia, um deles é do Paulo Alberto da Silva, porteiro que responde a 62 processos criminais por erro no reconhecimento fotográfico. É importante a gente ter uma perspectiva de como esse procedimento se dá dentro da própria delegacia. O que o governo precisa entender é que tem que investir em inteligência, em equipamentos de segurança que possibilite a polícia a ter um trabalho mais eficiente e não apenas em armas e caveirões. É preciso inteligência sem truculência” - afirmou.
Observações de uma especialista
A CPI, na última quinta-feira, 17, ouviu a doutora Lilian Stein formada em Psicologia Cognitiva pela Universidade do Arizona (EUA) que atua nesse ramo há 25 anos e é uma das mais conceituadas nesse campo de estudo. Ela fez várias observações e criticou o modelo “show-up” de identificação, em que a vítima se depara com o rosto de apenas um suspeito: “A memória não é uma máquina fotográfica. Há uma degradação natural dessa lembrança, mesmo para o rosto de um criminoso. Dias ou semanas após o acontecido já são suficientes para diminuir a nitidez e a precisão do registro de memória, além de outras interferências como conversar com pessoas e ver fotos” - alertou. Disse ainda, que ao analisar os aspectos da psicologia do testemunho, o fator étnico é algo que dificulta e pode distorcer o reconhecimento:
- É difícil reconhecer quem se viu uma vez só. Mais difícil ainda é quando se trata de uma pessoa de outra etnia. O reconhecimento fotográfico pode ser utilizado, mas para ser eficiente tem que cumprir as regras da Resolução 484 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). É preciso também uma ação conjunta entre as forças de segurança, Justiça e Ministério Público e capacitação de policiais – acrescentou.
Participaram do último encontro da CPI, a presidente Renata Souza, o vice-presidente Munir Neto, o relator, deputado Márcio Gualberto (PL) e as deputadas Dani Balbi (PC do B) e Verônica Lima (PT).
Declarações na Audiência Pública
Fotos de Divulgação
Jurema Werneck, Joelson e Danilo depoimentos importantes contra o racismo
Danilo Félix
Educador preso inocentemente em duas ocasiões devido ao reconhecimento fotográfico equivocado. “Depois de três anos ainda não dá para me emocionar. Depois de ter sido abordado na rua com três armas na cara, foram 55 dias onde passei por quatro presídios, muita humilhação, fome e sem saber o que iria acontecer no dia seguinte. Nesse período fui um pai ausente, não vi meu filho dar os primeiros passos. Sentia a falta de estar na mesa de jantar com minha mãe. Foi um período de desesperança, pois como todo jovem, sonhei em ver minha foto num álbum de figurinhas de jogador de futebol e, sem saber como e porque, acabei indo parar num álbum de fotografia da polícia. Álvaro Quintão – Comissão de Direitos Humanos - OAB “Prender alguém por indício não justifica. Não sabemos como aquele álbum foi construído. Temos que acabar de uma vez por todas a prisão por elemento fotográfico".
Jurema Werneck - Anistia Internacional “Prisão feita por reconhecimento facial é ilegal, pois é violação de direitos. É vexatório um Projeto de Lei para dizer para os policiais o que eles não podem fazer. É o racismo transformando policiais em inimigos da sociedade”.
Carlos Eduardo Rangel - Delegado da polícia civil – Diretor de Ensino " É preciso ficar claro, que criar normas não resolve o problema. Precisamos de mecanismos concretos. Nossa memória pode se equivocar e distorcer o que pensa ter observado, o que pensa que é real. Sempre digo que uma pisada na areia da praia ganha outros contornos com o vento, a chuva e a ação do tempo. É preciso estar atento à produção de falsa memória” Ângela Borges - Advogacia Preta Carioca “Falarmos de reconhecimento fotográfico é falarmos do mais puro racismo. É simples assim”. Silvia Ramos – SECEC “Pele alva e pele alvo. A massa carcerária tem cor. Há uma onda racista no sistema criminal brasileiro. Esse projeto coloca a polícia civil num papel de investigação, um lugar de onde ela nunca deveria ter saído” Joelson Santiago - Educrafo "Precisamos avançar e derrubar as barreiras existentes nesse país. Sou o resultado desse processo escravocrata inserido em nossa sociedade. Não pareço com fulano, com sicrano e nem com meu irmão gêmeo. Sou um ser único. Precisamos trazer dignidade e esse projeto traz dignidade". Nadine Borges - Secretaria Direitos humanos OAB – Niterói “Trata-se de características ideológicas, e isso tem apenas um nome: é racismo. É racismo o nome do reconhecimento facial. É preciso respeitar o Devido Processo Legal. A dúvida, por menor que seja, sempre tem que operar em favor da defesa e não operar a favor da acusação”. Sônia Ferreiras Soares - Direitos Humanos da OAB "Os agentes do Estado que agem com violação precisam ser advertidos. A justiça e quem representa tem que sofrer constrangimentos. Há um descumprimento cabal da lei e, definitivamente, essa situação não permanecer sem que nada aconteça”. Lenir Galdino - Secretaria de Raça, Gênero e Etnia do Sindprevb “O que fazem é o que chamamos nas favelas de 'esculacho'. O objetivo é criminalizar, menosprezar, diminuir, humilhar. Esse projeto tem uma importância muito grande para nos favelados. O que fazem é a criminalização através de nossas fotos".
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