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“Pesquisa Social” uma nova forma camuflada de Racismo?


Ainda era primavera, quando o governador Cláudio Castro tirou da cartola uma decisão extremamente complexa para resolver o problema do verão e do desordenamento na Zona Sul – leia-se Copacabana e Ipanema. Com a participação do prefeito Eduardo Paes, determinou que os menores de 18 anos que não tenham documentos e não estejam acompanhados dos pais, sejam encaminhados para um centro de identificação para que se realize uma “Pesquisa Social”. 



“Pesquisa Social’. Um nome pomposo, uma verdadeira pérola, para justificar a apreensão de jovens que se dirigem às praias. O policiamento seria intensificado , mas não fica claro onde seriam realizadas essas abordagens, ou em outras palavras, essas "barreiras civilizatórias”. Em qual trecho da cidade isso aconteceria? - Qual o perfil desses jovens?  - Quais exatamente as linhas de ônibus seriam averiguadas?

Parece claro, que a decisão de se realizar “blitz” em direção às praias, atende a uma solicitação (exigência) de uma parcela de comerciantes e moradores da Zona Sul que se acham uma casta, que não tá muito afins de conviver com essa gente preta, miscigenada, suburbana, favelada oriunda das periferias. Nem se pode alegar a condição financeira, pois muitos desses periféricos estão com mais grana e podendo tirar muito mais onda que muita gente da Zona Sul. Nem se pode alegar condição educacional, pois muitos desses jovens fazem graduação, mestrado ou doutorado, ou são artistas, músicos, empresários. Mesmo que não façam coisa nenhuma, não podem ser tratados como suspeitos.

            A decisão, tomada em setembro, foi revogada no dia 15 de dezembro, por decisão da juíza Lysia Maria da Rocha Mesquita, da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital, que determinava que o governo do estado e a Prefeitura do Rio se abstivessem de "apreender e conduzir adolescentes a instituições de acolhimento, senão em hipótese de flagrante de ato infracional, ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária, entre outras proibições."  A juíza argumentou: “Não estavam em flagrante delito, não possuíam mandado de busca e apreensão em seu desfavor, muito menos estavam em situação de abandono ou risco social”. E completou:

- Ações como a desenvolvida na "Operação Verão" reforçam essa estrutura triste e vergonhosa de segregação, exclusão e divisão, cria temores entre a população e incentiva o surgimento de grupos de ‘justiceiros’. Cinge o Rio de Janeiro, quebra a alma do carioca, hospitaleiro, gentil, alegre”, escreveu.

            No dia 16, Claudio Castro, em entrevista aos meios de comunicação, declarou: “Estamos pegando menores que estão desacompanhados de responsáveis, que não têm documentação, e levando para que a gente faça a "Pesquisa Social” deles. Não há nada de mais nisso, não há cerceamento na praia. Quer ir à praia, leve seu documento, vá com seu responsável, você vai poder curtir a praia numa boa”.

A entrevista do governador ocorreu após o desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, presidente do TJRJ - Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – que, atendendo ao pedido do Estado e do Município, revogou a decisão da juíza. Considerou que: "os casos de encaminhamento de adolescentes abordados à instituição de acolhimento não violam seu direito de ir e vir".

A intenção é fazer crer que esses menores não são exatamente “recolhidos” ou “detidos”, mas sim, “acolhidos”, “conduzidos” para uma “Pesquisa Social”. O governador não percebe que há uma grande humilhação, uma grande intimidação nisso tudo. Como ser averiguado mesmo sem ter cometido um crime ou uma ação que os incrimine? Equação difícil de resolver. Não podemos falar que estamos diante de um problema racial, pois logo seria classificado de mi...mi...mi... Por outro lado, como querem alguns, no Brasil não temos um problema de ordem racial, e sim de ordem social.

Essa hipótese foi exaustivamente discutida e mesmo aplaudida a partir de 2000 por uma parcela da Academia. Nobres doutores, que defendem a meritocracia e se opuseram às políticas Ações Afirmativas e muito especialmente às políticas de cotas nas universidades. Pessoas liberais que leem pela cartilha do filósofo John Locke, (1632–1704). Um homem rico, de família nobre, que detinha escravos e defensor ferrenho da propriedade privada.  Esses "liberais tupiniquins", se esquecem de que a estrutura social brasileira foi montada de forma completamente diferente e em cima de políticas etno-raciais.  

O problema é social?  - Sim, pode ser... Mas não podemos perder de vista que passamos por um sórdido processo colonial, onde a raça foi elemento central para a construção de nossa sociedade e da construção dessas relações. Em razão disso, é preciso estarmos atentos a essas novas formas de discriminações, a essas maquiagens do preconceito, que tentam esconder o velho racismo. Sem nenhuma vênia, Sr. Governador, mas “Pesquisa Social” é racismo, sim, é a mais cínica forma de segregação, pois sabemos quem serão os jovens abordados e de onde são oriundos.

Não dá para desenhar, mas Chico Buarque poeta de extrema sensibilidade e atento ao cotidiano carioca, em sua música “Caravanas” sacou o medo e o “Modus Operandis” de nossas autoridades e dessa pseudo elite Zona Sul. Cabe ressaltar que muitos deles moram de aluguel e enfrentam o metrô para trabalhar numa imobiliária no Centro da cidade ou fazem uma graninha extra na base do Airbnb. Ao se deparar com aquele amontoado de suburbanos ficam perplexos e assustados.  Chico poetiza a situação:

“Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga
Diz que malocam seus facões e adagas
em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré”

Picas enormes... Que horror, Chico...

Desde do Império rola a lenda dessas “rolas” e que as “sinhás carentes” e “sinhôs liberados” tinham um fetiche pelos africanos.

No verão é sempre tempo de arrastões, mas nesse final de 2023, surgiu um fato novo: a figura dos “Bad Boys Justiceiros". Machos Alfas que se reúnem vestidos de pretos e equipados com tacos de beisebol, soco-inglês e pedaços de corrente para caçar assaltantes e suspeitos na Zona Sul do Rio. Os alvos são pessoas periféricas. Se é preto, pardo, estranho ao meio, é potencialmente um suspeito. Não fazem "Pesquisa Social", simplesmente descem o pau.

Exmo.  Governador, essa discussão é mais velha do que o senhor imagina e que a canção de Chico, lançada em julho de 2017 pela Biscoito Fino. Lá em 1890, foi criada a "Lei da Vadiagem" que, guardando as devidas proporções, tinha a mesma finalidade de sua “Pesquisa Social”.   Num passado recente, quando em 1984, o então governador Leonel Brizola criou três linhas de ônibus, 460, 461 e 462, que ligavam o Centro à Zona Sul, via Túnel Rebouças, permitindo suburbanos chegarem a Ipanema em 20 minutos, a grita foi geral. O terror se instaurou na mente e corações dos “sulistas cariocas”. A facilidade proporcionada aos periféricos escandalizou as vedetes e os valetes que queriam o mar e o sol só para si.

Em 4 de novembro de 1984, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos escreveu no Jornal do Brasil, uma crônica de grande repercussão, intitulada “Nuvens Negras sobre o Sol de Ipanema”, que mostrava uma Zona Sul escandalizada, assustada, que não suportava a ideia de conviver com aquela gente preta, que fala alto, come com a boca aberta e ri de tudo. Era um escárnio. Dentre os muitos depoimentos, citamos três colhidos pelo jornalista na ocasião:


“A gente paga imposto tão caro para eles botarem essa pobreza na porta da gente. Parece até a Central do Brasil. De vez em quando a gente passa por eles e grita "Japeri". Eles ficam chateados.” (Ronaldo Mocdes, artista plástico).

 

“Eles têm direito de ir à praia, mas podem ir de maneira organizada. Ou senão ficar na praia deles, em Ramos. O governo podia fazer também um lago artificial pra eles lá no subúrbio “(Maria Luiza Nunes dos Santos, vendedora da Faganello).

 

“É o fim da picada, Ipanema acabou. Na praia ficam agora uns homens gordos passando bronzeador na barriga branca, aquelas cenas de amor de suburbano. Na minha porta é trocador assobiando, uma multidão sempre, gente feia mesmo. Não dá nem pra sair mais com os meus cachorros.” (Ronald Mocdes, artista plástico, acariciando seus cachorros da raça Saluky, de nomes Tramp e Chivas).

 

A exemplo de 1984 e de muitos outros períodos da história, a Zona Sul se assusta e se manifesta. Curioso que “1984” lembra o clássico de George Orwell onde o sistema, o poder tá de olho em tudo. De novo, entra Chico Buarque e consegue captar o desejo que vai ao mais íntimo, no fundo da alma dessa gente que se acha sofisticada. Eles não podem ver sob nenhuma hipótese o território ocupado...

Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Em outro trecho da música, a solução nada civilizada dessa cruel dessa "gente de bem", que defende a família:

Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia

Sr. governador, essa gente periférica subiu um ou dois degraus. Com essa coisa de cotas e políticas de Ações Afirmativas que muitos odeiam e desprezam. Exemplo dessa realidade são as deputadas Renata Souza e Talira Petrone que, inclusive, entraram com uma liminar nos mais diversões órgãos, exigindo que a “Pesquisa Social" seja suspensa. Por serem pretas, periféricas, sabem a quem essa proposta se destina. Renata é “cria” da Favela da Maré, jornalista, graduada na PUC,  doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pós-doutora em Mídia e Cotidiano pela UFF.  Já Talíria é lá de Ponta d'Areia, em Niterói, é graduada em História pela UERJ e mestra em Serviço Social UFF. São apenas dois exemplos... Os ônibus que serão barrados andam lotados dessa “nova negritude” alfabetizada e que sabem que nem o governador, nem o prefeito estão acima do direito de ir e vir estabelecido e podem violar a Constituição.

Governador, prefeito, desembargadores e juízes fingem não saber ou não querem ver que a periferia, o povo preto, as favelas pedem passagem. Essa conversa de que não temos um problema de ordem racial e sim de ordem social é balela. Tentam misturar as águas para justificar a sujeira, a falta de preparo e competência. O "outro" não é inimigo, não é marginal e favelado não é bandido.

Por isso, Sr. governador, respeite as favelas e o subúrbio. Mande parar com essas ações grotescas e violentas, com caveirões invadindo as periferias e policiais atirando a esmo, vitimando crianças, idosos e pessoas inocentes. Guardando as devidas proporções, qualquer comparação com o que acontece na Palestina não é mera coincidência. Muitos que não querem essa “pretaiada” na praia, defendem a invasão das terras yanomamis, a perseguição ao MST e aplaudem o sionismo.  Fazem discurso contra o aborto e as drogas, mas idolatram Israel, onde o aborto e a maconha são liberados. 

No verão a “chapa esquenta”. Por isso,  em outro trecho da música, Chico canta:

Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar

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